sábado, 1 de novembro de 2008

por aqui nada de novo, mas...

tem post novo- bem, rabugento, aliás- no meu outro blog.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

doberwoman

de manhã minha caixa craniana espreme a massa encefálica um pouco mais que o normal. o sólido- culpas, preconceitos, bons e maus hábitos, frases de efeito para mesas de bar- se separa do líquido- genialidades, ímpetos transformadores, amores espirituais, napoleanismos-, que, por sua vez, vai se concentrando na testa, pesando a cabeça para frente, até transbordar pelas fossas nasais. depois de lavar o rosto, me olho no espelho e posso vê-lo através da retina, escorrendo por trás dos globos oculares. o sólido se petrifica. o líquido se acumula, transborda, desce pelo nariz e escorre, escorre, escorre, escorre, escorre, escorre, escorre.

sábado, 12 de julho de 2008

o outro

por aqui, nada de novo... mas no meu outro blog tem. bora lá.

domingo, 6 de julho de 2008

vila madalena

eu aqui em casa, o sono chegando, e o sábado à noite correndo solto por aí. mulheres e homens à procura de um passa-tempo dentro de seus carros de paulista, homens na frente, mulheres atrás, todos já um pouco altos e com medo da polícia, guarda-carros-donos-da-rua, a euforia cheirando a cerveja, brigas, algum sexo e quase nada de amor. na vila madalena aos sábados à noite é proibido amar, e é obrigatório dar pelo menos dez risadas e falar bem alto. contadores de piadas ganham bônus no fim da noite. quem toma dois chopes paga um. você, camisa-social-barrigudo, pode aproveitar a promoção e convencer a sua mina loira a tomar um chopinho ao invés daquele sex on the beach que ela quer e que custa quinze pila, mas pensando bem, quem sabe com um pouco de vodka e pêssego no sangue ela não dá uma relaxada e dá pra você no carro na porta de casa, às três e meia da manhã, o segurança rondando, as câmeras do condomínio registrando tudo (e ela ainda diz que tem fetiche em saber que o porteiro está vendo), a porta do carro aberta porque estatisticamente é comprovado que os ladrões roubam 20% a menos os carros parados com a porta aberta, a mão por baixo da calcinha e a língua por cima de tudo, naquele beijo estonteante que só você sabe dar, camisa-social-azul-claro. sim, se ela tomar esse sex on the beach- vodka, pêssego e açúcar, bem doce, sobe rápido- depois é bem possível que ela faça alguma coisa com você no carro, algo de satisfatório e reconfortante, e o domingo se torne um pouco menos domingo, o maltido domingo que é maldito porque depois vem a segunda, e com a segunda vem a vida que você tanto adora.
meia-noite, vou dormir.
sinceramente, social-barrigudo, não sei quem é mais feliz. talvez sejamos ambos. talvez não o seja ninguém.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Hoje não quero escrever nada. Hoje quero ouvir o barulho da escova nos dentes, colocar uma roupa confortável e dormir. Quero não formular, não concretizar, não dizer as barbaridades que eu estou acostumada a dizer, não me esforçar para formulações finais. Quero deitar, e dormir, sem abstrações. Quero que o dia chegue ao seu fim com uma ignorante suavidade, que ele flua por entre as minhas veias, que a vida se evidencie como ela é, e que tudo seja aceito, que o dia seja aceito e que a finitude deste dia venha como uma promessa cumprida. E que eu não escreva, nem se valer a pena, nem se for uma grande idéia, nem se for inevitável, apenas uma linha sobre ele. Quero que o dia acabe, e que comece outro. Sem uma palavra. Sem um pio. Que a meia-noite venha no mais profundo silêncio. E que o tempo passe no vácuo. Pelo menos até amanhã. Hoje, só amanhã.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

a vida através dos óculos corretivos fica menos difícil.

através dos meus bons e baratos óculos as coisas possuem mais contorno e definição; mas, ao mesmo tempo, meus óculos me escondem de quem me vê. o olhar enquadrado; a haste preta, reinando sobre o rosto, dividindo-o; o limite entre a sobrancelha e a pupila; o reflexo. seu olhar não me penetra tão fácil. você não me perscruta tão fácil. até um certo limite, eu sou os meus óculos. e mais nada. eles remetem a um personagem que na verdade não sou eu. ninguém nasceu de óculos. mas os óculos já nascem imbuídos de alguém. alguém que não necessariamente existe. os meus, no caso, evocam uma secretária, talvez uma professora de inglês. seria eu alguém a altura dos meus óculos? e você, por um acaso, teria coragem de sobrepujar tudo isso e despir meus olhos?

não, isso não é tão fácil. fito-o por detrás do vidro e, enquanto você pensa, ganho tempo e espaço entre o seu olhar e o meu. a lágrima não é tão franca. o brilho não é tão franco.

os óculos são a maquiagem do olhar.

o que existe atrás da lente? e à frente? e, se o mundo for só indefinição, serei eu então uma herege? afinal, encaixar um mundo direito num mundo torto é como tentar encaixar um quadrado num triângulo de mesma dimensão.

quando compramos um par de óculos não ganhamos o privilégio da visão corrigida, e sim o privilégio da consciência de uma visão torta.

antes dos óculos corretivos a cegueira era plural e relativa. a beleza, a saúde e a velhice também.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

lágrimas de sal

"A minha língua portuguesa, ninguém me-a-tira!"

- Homem desconhecido
Guimarães (primeira capital de Portugal)
02:25 AM

sexta-feira, 28 de março de 2008

bem-feito

Era feia, e sabia. Sabia, mas fazia com que todos ao seu redor gostassem dela, e das regatas brancas. Brancas como a vela de um barco deve ser. Fazendo doer e estupefar-se a retina. Explodindo com toda a luz de um dia sem nuvens. Como é que as regatas brancas podem ser tão mais especiais do que as outras regatas? Como é que ela poderia ser mais especial que as outras? – Porque era feia. E sabia. Sabia que era para ser feia, feia e pronto, nem um pingo de beleza a mais do que isso. Estava pronta, defeito de fábrica, não tinha conserto. Mas também sabia que feiura e sabedoria, juntas, são fortes candidatas a algo superior. Algo superior à beleza. Algo que me afinou as veias e engrossou o sangue. Algo que entrou pela minha retina como uma agulha fina e comprida, me espetou o bojo da cabeça abrindo um coágulo minúsculo, mas dolorido o suficiente para eu não mais suportar. Espetei-a também, de volta. Bem-feito. Assim não é tão difícil de olhar. Assim o branco não é tão branco, ali, na ponta da faca, olhos nos olhos.

quarta-feira, 12 de março de 2008


Burn, pretty bridges burn
All my bridges burn
Will I ever learn?

All my bridges burn


Aconteceu quando eles estavam em Paris, no Vert Galant, sabe? aquele jardinzinho simpático que fica na ponta da Île-de-la-Cité, à beira do Rio Sena, as lanchas repletas de turistas passando à frente com seus alto-falantes, a Torre Eiffel à esquerda, a Pont Neuf à direita, o calor, o vinho, enfim, estavam em Paris e era verão. Foi vindo aos poucos uma gritaria da direção da Île Saint-Louis, um pequeno ruído que logo se transformava numa onda de berros desajustados e poliglotas. Foram ver o que tinha acontecido: eram as pontes, as pontes que ligavam a ilha em que estavam ao continente, ruindo. Se partiam em pedaços, uma em seguida da outra, primeiro a Pont de Sully, depois a Pont Marie e a Pont de la Tournelle, assim, de par em par, sincronizadamente, tanto da Rive Droite como da Rive Gauche. Não era um ataque terrorista pois não havia nenhum estrondo de bombas. O único barulho que ouviam além da gritaria histérica era o som gordo dos grandes e anciãos blocos de pedra mergulhando no escuro Rio Sena, produzindo ondas espessas que desequilibravam as lanchas turísticas. Os que estavam atravessando de um lado para outro corriam desesperados, muitos deles caíam no rio como ratos num terremoto, enfim, um desastre total. Eles viram a penúltima das pontes, a Pont au Change, se desfalecendo, do meio às pontas, e uma família de orientais se separando, o sogro e o pai de um lado, a mãe, o filho e a sogra do outro. Seguindo a ordem, em breve seria a última e mais antiga delas: a Pont Neuf, seus arcos à maneira romana. Eles se olharam, olharam a garrafa de vinho pela metade e se olharam novamente. Ela levantou os óculos de grau e coçou os olhos com força; ele começou a folhear o guia.
- Acho que as pontes se cansaram. – Ela disse.
- Se cansaram?
- É. Vai ver que é assim. Chega uma hora cansa. Vê aí quantos anos essa ponte tem.
- Essa aí...- ele procurou no Michelin em inglês, franzindo a testa por conta do parco conhecimento da língua. Ela sorriu; gostava quando ele franzia a testa daquele jeito.- tem quatrocentos anos. Fez quatrocentos anos no ano passado. Olha que curioso: na abertura das suas obras o rei Henrique III não parava de chorar porque tinha ido no mesmo dia ao funeral dos seus filhos favoritos que haviam morrido em duelo, e...
- Não temos tempo para isso, querido. É o seguinte: - Ela fechou o livro e as mãos dele dentro das suas. - De que lado você quer ficar?
Ele olhou para os olhos dela, vívidos atrás das lentes corretoras. - Do seu lado.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

à la carte


Eu tenho certeza de que você vai dizer: você caiu numa armadilha mental, Pedro, você está preso na pior armadilha mental que existe, o pensamento circular, aquele que come o próprio rabo, que roda, roda, roda mas não sai do mesmo lugar. Eu discordo. No pensamento circular ainda há movimento, mesmo que seja em torno de um único eixo. Se você pensar bem, o movimento de rotação da Terra é algo bastante estúpido. Mas o que seria de nós sem o dia e a noite, e principalmente, sem a percepção da passagem do tempo, sem estas parcas vinte e quatro horas? Tudo o que eu gostaria agora era de um pouco de dinâmica, qualquer que fosse. Pois o pior pensamento de todos, meu caro, é o pensamento represado. Água parada. O dia todo fica com aspecto de gelatina, a gente vê por entre uma camada espessa, o tempo pula da colher de volta para o pote, e não se pode mastigar, nem engolir, mal se pode suportar aquela consistência estagnada. Gelatina. A comida mais idiota que existe. Não tem cor nem sabor nem cheiro. Quase como a água, mas sem um milésimo da dignidade que a água tem. Porque a gelatina quer ser alguma coisa que não ela mesma, e então injetam aquele corante vermelho ou verde ou laranja juntamente com um sabor fabricado que eles têm a petulância de descrever como idêntico ao natural, sendo que poderia ser idêntico a tudo, menos a algo natural. Pensar em alguém específico ininterruptamente é totalmente artificial. Você escolhe a cor, o sabor, o cheiro. Mistura com água quente, coloca numa vasilha de vidro, põe na geladeira e ainda chama de alimento. Pois não é alimento. Alimento é multi-pensar. Alimento é não pensar. Alimento é plural, dinâmico. Este marasmo é singular, estático, monocromático. A paralisia da alma. Alimento da alma, isso já é outra coisa.

*

Todos os dias às onze e quarenta e cinco eu começava a suar de nervoso. Seria o momento de vestir meu paletó, sair da minha sala, ir ao hall do elevador, apertar o botão, entrar no elevador, apertar o cinco, descer sete andares, em cada andar ser empurrado para o fundo por uma penca de empregados, ao chegar no quinto pedir licença e ouvir resmungos por conta do meu corpanzil, sair do elevador, virar à esquerda, me dirigir à mesa do centro da sala e, ao meio-dia em ponto, convidar Amanda para almoçar.
O meu terror não era a dúvida se ela aceitaria ou não. Era a certeza de que ela aceitaria. Sempre.
Eu era o vice-presidente. Ela, a secretária do setor de cobranças. As pessoas comentavam, sim, as pessoas sempre comentam. Mas eu não me importava. Eu era solteiro, não devia satisfações a ninguém. E Amanda, bem, Amanda sempre aceitava.
Ela dizia é claro que sim e meu suor aumentava ainda mais. Eu sorria num sorriso agonizante, expelido do meu rosto embrulhado. Ela dizia é claro que sim, pegava sua bolsa e seu casaco e me acompanhava. Implacável. Descíamos ao térreo. Como está sendo seu dia?, ela me perguntava. Eu contava alguma chateação do escritório, reclamava de algum funcionário incompetente e da dor nas costas, e após um breve silêncio ela começava a contar alguma coisa sobre sua vida. Eu sabia. Todo o dia era assim.
Eu laceava um pouco a gravata, afrouxava um pouco o cinto, desabotoava o primeiro botão da camisa, mas mesmo assim o ar não circulava, o incômodo não sumia. Fizesse frio ou calor. Sol ou chuva. Era sempre assim, do meio-dia às duas. E Amanda falava, até que bastante para a mulher tímida que parecia ser. Entre sua mãe controladora e a vontade de ter um filho homem dizia: Que engraçado, conto coisas pra você que nunca contei pra ninguém. Você é um ótimo ouvinte, Pedro! Um ótimo ouvinte e a hipoteca da casa. Um ótimo ouvinte e as férias em Caraguatatuba. E o primeiro namorado. E o analista canalha. E a pílula de farinha. E os preços do supermercado.
Eu ouvia, e suava. E, suando, levava-a no melhor restaurante da região. Um restaurante francês. Ótimo. Eu sei o que é bom. Fui criado comendo iguarias que minha mãe fazia, do mais simples arroz branco até cassolette de escargots, feitas com o esmero de uma artista. Sei comer bem, aliás como bem, e muito. Sei degustar um bom prato. Sei também o que é enganação, e o que é porcaria. E eu sabia que aquele restaurante possuía pratos tradicionais muito bem feitos- moules et frites, coq au vin, confit de canard, coisas do tipo.
Eu entrava com Amanda no restaurante, e o maître vinha prontamente nos perguntar: Mesa para o senhor e para a senhora? O vínculo fictício e a falsa cumplicidade entre nós e os funcionários da casa faziam Amanda enrubescer. Ela não tinha muita idéia do que eu queria com aqueles almoços, afinal já fazia quase três meses que nos encontrávamos cinco dias por semana e eu não arriscava nenhum contato físico, tampouco perguntava diretamente sobre sua vida íntima. Certo dia resolvi mentir, dizendo que tinha uma namorada há muito tempo em outra cidade. Você é fiel?, ela indagou, enrubescendo mais uma vez. Sim. Fidelíssimo. Ela não me perguntou mais nada, aceitando a minha mentira como sendo a verdade absoluta. Assim, não teria que se desvencilhar de seu confidente em nome das boas-maneiras profissionais que costumam impregnar cérebros de secretárias sérias como ela.
Sentávamos numa mesa a dois. Eu pedia meia garrafa de chardonnay e uma água com gás para não atrapalhar o trabalho depois. Escolhia uma entrada e um prato principal. Ela me imitava, ou então pedia algum conselho sobre o que deveria escolher. E eu era generoso, sempre. Escolhia para ela o melhor, do mesmo jeito que minha mãe fazia comigo. Tentava ensinar a ela o que é refinamento, o que é gastronomia, enfim, a diferença entre comer qualquer coisa e experimentar na boca um pouco do que a humanidade tem de melhor. Ela acreditava em tudo o que eu dizia, era capaz até de repetir as minhas observações, mas não fazia questão de aprender. No final das contas, no ato de comer ela mal prestava atenção se o prato era carne ou peixe, doce ou salgado. Para ela, sair para almoçar ou jantar tinha uma conotação estritamente social, como o é, aliás, para muita gente por aí que sai repetindo as tendências da cozinha contemporânea, pagando fortunas em restaurantes de pé direito alto e de uma comida escassa perdida em pratos de um metro de diâmetro. A diferença é que ela ao menos sabia que não sabia. Uma mulher à moda antiga, era o que Amanda era- e uma boa amostra da espécie. Mesmo que eu a pedisse em casamento, mesmo que ela tivesse que parar de trabalhar, mesmo que ela assumisse um papel preponderante na minha vida pessoal ela nunca deixaria de estar hierarquicamente abaixo de mim, nunca deixaria de ser a secretária competente e subserviente, me servindo seu traseiro assim como servia cafezinhos, cedendo seu ventre para os meus filhos, seu tempo para os meus problemas. E ela sempre deixaria que eu escolhesse seu prato. Era uma troca: ela confiaria em mim, e eu confiaria nela, por toda a eternidade.
Quer dizer, até a hora da sobremesa.
Nessa hora minha sudorese atingia o pico. Minha camisa ficava completamente encharcada, enquanto minha boca secava. Eu pedia mais uma garrafinha de água mineral e virava de uma vez mas era inútil. O maître vinha com o menu de novo. Aceitam sobremesa?, ele perguntava. Amanda sorria para ele, sorria para mim e enrubescia novamente pois não era boba, sabia muito bem a perversão que iria cometer dentro de poucos instantes, mas agia como se fosse a coisa mais natural do mundo. O maître sorria. Amanda sorria. Todos sorriam, menos eu. Meu apetite havia desaparecido por completo. Não quero nada, declarava. Amanda enrubescia mais uma vez, virava o rosto para o maître e dizia, entregando-lhe o menu: Eu quero o de sempre.
O de sempre era gelatina. Dá pra acreditar? Aquela merda de restaurante francês tinha gelatina no cardápio.
E Amanda sempre pedia gelatina de sobremesa, que vinha naqueles potinhos decorados de vidro transparente, parecidos com os que antigamente mamãe preenchia com mousse de chocolate amargo. Ora verde, ora laranja, ora vermelha. Eu gosto de todas, é minha comida preferida, dizia ela, e suas glândulas salivares doíam de tanto encharcar sua boca. A boca dela molhada, a minha feito um deserto. Com a colher de sobremesa na mão, Amanda olhava para o conteúdo monocromático do potinho como se estivesse em frente à explosão de cores de um Renoir. E então, gemendo infantilmente de prazer, penetrava com a colher aquela superfície flácida, tirava e levava até a boca um naco tremulando como se estivesse vivo, um protozoário gigantesco e agonizante que durante uma fração de segundo eu ainda podia ver com clareza, principalmente se era de limão, se resfalecendo e espalhando entre sua língua viscosa, entre seus dentes brancos, preenchendo sua pequena e úmida boca de verde enquanto ela gemia mais uma vez. Depois ela engolia, praticamente sem mastigar, de olhos fechados. Fazia isso sequencialmente até esvaziar o pote, e depois, enquanto ela falava, dava para ver que sua língua estava tingida de corante industrial.
Depois disso eu invariavelmente permanecia calado, tentando fazer com que meus batimentos cardíacos e minha pressão voltassem ao normal. Ela estranhava, às vezes me perguntava se estava tudo bem. Eu mentia, pedia um café, pagava a conta e nós voltávamos a pé para o escritório. Acompanhava-a até seu andar, nós nos despedíamos, eu voltava para a minha sala, tirava os sapatos e deitava no chão. Ficava quinze, às vezes vinte minutos deitado, até me recuperar. E, por algum motivo, das duas da tarde até o meio-dia do outro dia, e durante todo o fim-de-semana, a única coisa na qual eu conseguia pensar era na próxima vez em que eu iria assistir àquele mesmo espetáculo horrendo que Amanda me proporcionava. Naquele maldito bistrozinho francês.
Um dia, enquanto ela estava no toalete, chamei o maître e perguntei por que diabos eles tinham gelatina no cardápio de sobremesa. Ele me contou que a fundadora do restaurante, mãe do atual dono, comia gelatina todos os dias por conta de suas supostas propriedades medicinais, dizia que aquilo havia prolongado sua vida em muitos anos e portanto fazia questão de oferecer a seus clientes. Em seu leito de morte fez o filho prometer que, enquanto o restaurante existisse, a gelatina nunca sairia do cardápio. E dito e feito, lá estava:

Gélatine. Aux Fraises, Citrons, Oranges.

*

Casei com minha com-cunhada. Uma moça baixinha, roliça como eu, de família italiana e temperamento tempestuoso. Sabe cozinhar risotos e massas, mas frequentemente exagera no creme de leite. Aceitou meu pedido apressado sem muitos conflitos, sem dúvida pela minha situação financeira, mas principalmente porque tem pavor de ficar sozinha. É geniosa, e por conta de seu ciúme doentio fui obrigado a parar de ver Amanda na hora do almoço. Mas, confesso, até hoje não consigo pensar em outra coisa. Fecho os olhos e vejo a cor da gelatina de Amanda, a colher retirando o primeiro pedaço, o troço deslizando na boca, no esôfago, no estômago de Amanda, se misturando com o resto do almoço, sendo digerida, dissolvendo-se. E ando tendo o mesmo sonho, todos os dias. Minha casa, minha rua, o mundo todo está submerso numa água translúcida e quente, que depois de um tempo vai se tornando verde, cada vez mais verde, até alcançar um verde totalmente uniforme e começar a esfriar e se solidificar, entrando por todos os meus orifícios até preencher as minhas vias internas. Permaneço assim, submerso e repleto. Começo a sentir muito frio, e quando estou quase morrendo de falta de ar eu acordo, suando.