quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

à la carte


Eu tenho certeza de que você vai dizer: você caiu numa armadilha mental, Pedro, você está preso na pior armadilha mental que existe, o pensamento circular, aquele que come o próprio rabo, que roda, roda, roda mas não sai do mesmo lugar. Eu discordo. No pensamento circular ainda há movimento, mesmo que seja em torno de um único eixo. Se você pensar bem, o movimento de rotação da Terra é algo bastante estúpido. Mas o que seria de nós sem o dia e a noite, e principalmente, sem a percepção da passagem do tempo, sem estas parcas vinte e quatro horas? Tudo o que eu gostaria agora era de um pouco de dinâmica, qualquer que fosse. Pois o pior pensamento de todos, meu caro, é o pensamento represado. Água parada. O dia todo fica com aspecto de gelatina, a gente vê por entre uma camada espessa, o tempo pula da colher de volta para o pote, e não se pode mastigar, nem engolir, mal se pode suportar aquela consistência estagnada. Gelatina. A comida mais idiota que existe. Não tem cor nem sabor nem cheiro. Quase como a água, mas sem um milésimo da dignidade que a água tem. Porque a gelatina quer ser alguma coisa que não ela mesma, e então injetam aquele corante vermelho ou verde ou laranja juntamente com um sabor fabricado que eles têm a petulância de descrever como idêntico ao natural, sendo que poderia ser idêntico a tudo, menos a algo natural. Pensar em alguém específico ininterruptamente é totalmente artificial. Você escolhe a cor, o sabor, o cheiro. Mistura com água quente, coloca numa vasilha de vidro, põe na geladeira e ainda chama de alimento. Pois não é alimento. Alimento é multi-pensar. Alimento é não pensar. Alimento é plural, dinâmico. Este marasmo é singular, estático, monocromático. A paralisia da alma. Alimento da alma, isso já é outra coisa.

*

Todos os dias às onze e quarenta e cinco eu começava a suar de nervoso. Seria o momento de vestir meu paletó, sair da minha sala, ir ao hall do elevador, apertar o botão, entrar no elevador, apertar o cinco, descer sete andares, em cada andar ser empurrado para o fundo por uma penca de empregados, ao chegar no quinto pedir licença e ouvir resmungos por conta do meu corpanzil, sair do elevador, virar à esquerda, me dirigir à mesa do centro da sala e, ao meio-dia em ponto, convidar Amanda para almoçar.
O meu terror não era a dúvida se ela aceitaria ou não. Era a certeza de que ela aceitaria. Sempre.
Eu era o vice-presidente. Ela, a secretária do setor de cobranças. As pessoas comentavam, sim, as pessoas sempre comentam. Mas eu não me importava. Eu era solteiro, não devia satisfações a ninguém. E Amanda, bem, Amanda sempre aceitava.
Ela dizia é claro que sim e meu suor aumentava ainda mais. Eu sorria num sorriso agonizante, expelido do meu rosto embrulhado. Ela dizia é claro que sim, pegava sua bolsa e seu casaco e me acompanhava. Implacável. Descíamos ao térreo. Como está sendo seu dia?, ela me perguntava. Eu contava alguma chateação do escritório, reclamava de algum funcionário incompetente e da dor nas costas, e após um breve silêncio ela começava a contar alguma coisa sobre sua vida. Eu sabia. Todo o dia era assim.
Eu laceava um pouco a gravata, afrouxava um pouco o cinto, desabotoava o primeiro botão da camisa, mas mesmo assim o ar não circulava, o incômodo não sumia. Fizesse frio ou calor. Sol ou chuva. Era sempre assim, do meio-dia às duas. E Amanda falava, até que bastante para a mulher tímida que parecia ser. Entre sua mãe controladora e a vontade de ter um filho homem dizia: Que engraçado, conto coisas pra você que nunca contei pra ninguém. Você é um ótimo ouvinte, Pedro! Um ótimo ouvinte e a hipoteca da casa. Um ótimo ouvinte e as férias em Caraguatatuba. E o primeiro namorado. E o analista canalha. E a pílula de farinha. E os preços do supermercado.
Eu ouvia, e suava. E, suando, levava-a no melhor restaurante da região. Um restaurante francês. Ótimo. Eu sei o que é bom. Fui criado comendo iguarias que minha mãe fazia, do mais simples arroz branco até cassolette de escargots, feitas com o esmero de uma artista. Sei comer bem, aliás como bem, e muito. Sei degustar um bom prato. Sei também o que é enganação, e o que é porcaria. E eu sabia que aquele restaurante possuía pratos tradicionais muito bem feitos- moules et frites, coq au vin, confit de canard, coisas do tipo.
Eu entrava com Amanda no restaurante, e o maître vinha prontamente nos perguntar: Mesa para o senhor e para a senhora? O vínculo fictício e a falsa cumplicidade entre nós e os funcionários da casa faziam Amanda enrubescer. Ela não tinha muita idéia do que eu queria com aqueles almoços, afinal já fazia quase três meses que nos encontrávamos cinco dias por semana e eu não arriscava nenhum contato físico, tampouco perguntava diretamente sobre sua vida íntima. Certo dia resolvi mentir, dizendo que tinha uma namorada há muito tempo em outra cidade. Você é fiel?, ela indagou, enrubescendo mais uma vez. Sim. Fidelíssimo. Ela não me perguntou mais nada, aceitando a minha mentira como sendo a verdade absoluta. Assim, não teria que se desvencilhar de seu confidente em nome das boas-maneiras profissionais que costumam impregnar cérebros de secretárias sérias como ela.
Sentávamos numa mesa a dois. Eu pedia meia garrafa de chardonnay e uma água com gás para não atrapalhar o trabalho depois. Escolhia uma entrada e um prato principal. Ela me imitava, ou então pedia algum conselho sobre o que deveria escolher. E eu era generoso, sempre. Escolhia para ela o melhor, do mesmo jeito que minha mãe fazia comigo. Tentava ensinar a ela o que é refinamento, o que é gastronomia, enfim, a diferença entre comer qualquer coisa e experimentar na boca um pouco do que a humanidade tem de melhor. Ela acreditava em tudo o que eu dizia, era capaz até de repetir as minhas observações, mas não fazia questão de aprender. No final das contas, no ato de comer ela mal prestava atenção se o prato era carne ou peixe, doce ou salgado. Para ela, sair para almoçar ou jantar tinha uma conotação estritamente social, como o é, aliás, para muita gente por aí que sai repetindo as tendências da cozinha contemporânea, pagando fortunas em restaurantes de pé direito alto e de uma comida escassa perdida em pratos de um metro de diâmetro. A diferença é que ela ao menos sabia que não sabia. Uma mulher à moda antiga, era o que Amanda era- e uma boa amostra da espécie. Mesmo que eu a pedisse em casamento, mesmo que ela tivesse que parar de trabalhar, mesmo que ela assumisse um papel preponderante na minha vida pessoal ela nunca deixaria de estar hierarquicamente abaixo de mim, nunca deixaria de ser a secretária competente e subserviente, me servindo seu traseiro assim como servia cafezinhos, cedendo seu ventre para os meus filhos, seu tempo para os meus problemas. E ela sempre deixaria que eu escolhesse seu prato. Era uma troca: ela confiaria em mim, e eu confiaria nela, por toda a eternidade.
Quer dizer, até a hora da sobremesa.
Nessa hora minha sudorese atingia o pico. Minha camisa ficava completamente encharcada, enquanto minha boca secava. Eu pedia mais uma garrafinha de água mineral e virava de uma vez mas era inútil. O maître vinha com o menu de novo. Aceitam sobremesa?, ele perguntava. Amanda sorria para ele, sorria para mim e enrubescia novamente pois não era boba, sabia muito bem a perversão que iria cometer dentro de poucos instantes, mas agia como se fosse a coisa mais natural do mundo. O maître sorria. Amanda sorria. Todos sorriam, menos eu. Meu apetite havia desaparecido por completo. Não quero nada, declarava. Amanda enrubescia mais uma vez, virava o rosto para o maître e dizia, entregando-lhe o menu: Eu quero o de sempre.
O de sempre era gelatina. Dá pra acreditar? Aquela merda de restaurante francês tinha gelatina no cardápio.
E Amanda sempre pedia gelatina de sobremesa, que vinha naqueles potinhos decorados de vidro transparente, parecidos com os que antigamente mamãe preenchia com mousse de chocolate amargo. Ora verde, ora laranja, ora vermelha. Eu gosto de todas, é minha comida preferida, dizia ela, e suas glândulas salivares doíam de tanto encharcar sua boca. A boca dela molhada, a minha feito um deserto. Com a colher de sobremesa na mão, Amanda olhava para o conteúdo monocromático do potinho como se estivesse em frente à explosão de cores de um Renoir. E então, gemendo infantilmente de prazer, penetrava com a colher aquela superfície flácida, tirava e levava até a boca um naco tremulando como se estivesse vivo, um protozoário gigantesco e agonizante que durante uma fração de segundo eu ainda podia ver com clareza, principalmente se era de limão, se resfalecendo e espalhando entre sua língua viscosa, entre seus dentes brancos, preenchendo sua pequena e úmida boca de verde enquanto ela gemia mais uma vez. Depois ela engolia, praticamente sem mastigar, de olhos fechados. Fazia isso sequencialmente até esvaziar o pote, e depois, enquanto ela falava, dava para ver que sua língua estava tingida de corante industrial.
Depois disso eu invariavelmente permanecia calado, tentando fazer com que meus batimentos cardíacos e minha pressão voltassem ao normal. Ela estranhava, às vezes me perguntava se estava tudo bem. Eu mentia, pedia um café, pagava a conta e nós voltávamos a pé para o escritório. Acompanhava-a até seu andar, nós nos despedíamos, eu voltava para a minha sala, tirava os sapatos e deitava no chão. Ficava quinze, às vezes vinte minutos deitado, até me recuperar. E, por algum motivo, das duas da tarde até o meio-dia do outro dia, e durante todo o fim-de-semana, a única coisa na qual eu conseguia pensar era na próxima vez em que eu iria assistir àquele mesmo espetáculo horrendo que Amanda me proporcionava. Naquele maldito bistrozinho francês.
Um dia, enquanto ela estava no toalete, chamei o maître e perguntei por que diabos eles tinham gelatina no cardápio de sobremesa. Ele me contou que a fundadora do restaurante, mãe do atual dono, comia gelatina todos os dias por conta de suas supostas propriedades medicinais, dizia que aquilo havia prolongado sua vida em muitos anos e portanto fazia questão de oferecer a seus clientes. Em seu leito de morte fez o filho prometer que, enquanto o restaurante existisse, a gelatina nunca sairia do cardápio. E dito e feito, lá estava:

Gélatine. Aux Fraises, Citrons, Oranges.

*

Casei com minha com-cunhada. Uma moça baixinha, roliça como eu, de família italiana e temperamento tempestuoso. Sabe cozinhar risotos e massas, mas frequentemente exagera no creme de leite. Aceitou meu pedido apressado sem muitos conflitos, sem dúvida pela minha situação financeira, mas principalmente porque tem pavor de ficar sozinha. É geniosa, e por conta de seu ciúme doentio fui obrigado a parar de ver Amanda na hora do almoço. Mas, confesso, até hoje não consigo pensar em outra coisa. Fecho os olhos e vejo a cor da gelatina de Amanda, a colher retirando o primeiro pedaço, o troço deslizando na boca, no esôfago, no estômago de Amanda, se misturando com o resto do almoço, sendo digerida, dissolvendo-se. E ando tendo o mesmo sonho, todos os dias. Minha casa, minha rua, o mundo todo está submerso numa água translúcida e quente, que depois de um tempo vai se tornando verde, cada vez mais verde, até alcançar um verde totalmente uniforme e começar a esfriar e se solidificar, entrando por todos os meus orifícios até preencher as minhas vias internas. Permaneço assim, submerso e repleto. Começo a sentir muito frio, e quando estou quase morrendo de falta de ar eu acordo, suando.