segunda-feira, 19 de novembro de 2007

soumrak



Sabe, parece de propósito. Essa luz de novo. Essa não-luz que deixa tudo horrendo, que transforma monstruosamente os objetos. Ontem também foi assim. Já é duro o tempo que há entre uma hora e outra. Já é duro arrastar os minutos, empurrar os ponteiros. E como se não bastasse, no lugar do costumeiro pôr-do-sol a gente tem como recompensa esse fim de dia que não é mais dia, esse fim de dia que não tem mais fim, que não deixa a noite chegar, que nos enclausura nesta tarde até o último minuto, até o último respiro dessa espessa tarde de sábado. Impedindo que a escuridão transborde de vez e tome o seu lugar, que as lâmpadas da cidade se acendam alegres porque chegou a sua vez de iluminar as ruas, cada uma com seu mundo particular, produzindo suas próprias sombras. Os abajures, os postes de luz, os coloridos e animados faróis dos carros, os coloridos e animados sinais de trânsito, os extravagantes neons, todos embebidos no breu, tudo é tão feliz à noite. Nela há sempre a perspectiva do fim. A morte em comprimidos diários. O silêncio das cores. O cheiro de janta, o cheiro de jasmim, os carros em seu calmo retorno à casa. A satisfação de colocar um ponto final no dia, ou então a possibilidade das reticências. Porque você pode sempre não dormir. Porque sempre há alguém para sorver a noite com você: um amigo, uma mulher, um desconhecido que seja. Mas não, nesses dias como hoje a noite nunca chega. Há apenas esse lençol cor de chumbo cobrindo tudo, tingindo minha casa, tingindo a rua molhada pela última chuva, engolindo o espaço de tempo entre um cigarro e outro, pesando a cabeça, sobrecarregando as retinas, contraindo as sobrancelhas, afundando as olheiras. Esse maldito fim de tarde infinito. Não. Não podia mais me afundar no sofá, não podia começar meu segundo maço antes que a noite viesse. Se eu abrisse este mesmo pacote de cigarros, se eu ligasse a televisão, tirasse um cochilo, fritasse alguns ovos, ou se eu fraquejasse e desse aquele telefonema, pegasse o telefone e digitasse os números óbvios e repetitivos que os meus dedos estão condenados a perseguir, esperasse que ela dissesse alô e então pedisse desculpas, por algum motivo eu sei que ela nunca viria. A noite, digo. A noite com suas putas, seus leites com chocolate, seus travesseiros. Então me levantei rapidamente, coloquei o maço no bolso da camisa, três aspirinas na boca e saí para a rua. Precisava de alguém. E lá no bar do Ademar sempre tem alguém. No mínimo, o Ademar. E com o Ademar sempre tem assunto, porque na sua família sempre tem alguém doente. E tudo o que eu precisava era de um paciente. Alguém que eu pudesse tranquilizar e entupir de remédios. Me vê uma cerveja, por favor. Como anda o Corinthians, seu Ademar? Mal, hein? E o sobrinho, seu Ademar, curou da catapora? Fez o tratamento que eu te passei, com aciclovir? Zovirax. E permanganato, claro. Tem que fazer, seu Ademar. Mas é melhor quando pega assim criança, acredite. Ou talvez não perguntar nem dizer nada, apenas ouvir alguma conversa da mesa alheia. Alguma coisa interessante. Um segredo, uma piada. Ou qualquer outra coisa. Talvez uma conversa entre homens, sobre mulheres. Talvez uma conversa entre mulheres, sobre homens. Talvez houvesse alguma mulher acompanhada. Ou uma mulher sozinha. Praticamente improvável, mas nunca se sabe. E talvez essa mulher sozinha nem fosse tão feia assim. Praticamente improvável, mas nunca se sabe. Talvez tivesse dentes bonitos, ou braços bonitos. Talvez fosse gostosa. E uma mulher é sempre uma mulher. Bem, nunca se sabe. Outro dia mesmo veio um traveco no consultório. Com amidalite. Só soube que era um homem porque minha secretária viu o nome de nascença na carteirinha do plano médico. Roger. É Roger, mas me chame de Pauline, viu? Ainda por cima era uma mulher bonita, bem cuidada. Pauline, o traveco. Com amidalite. Não teve jeito, tive que operar. Mas muito provavelmente a mulher do bar do Ademar fosse mesmo uma mulher, e talvez ela trocasse olhares comigo, talvez ela sorrisse para mim. E o melhor mesmo, a vitória máxima, seria se ela me desejasse boa-noite. E me desse sem saber a boa notícia: ela chegou. Ela, que você tanto esperava, aqui está. Vamos acender as luzes, meu querido. Acenda todas as luzes da casa. Pode descansar, querido. Descanse seus olhos nos meus. Descanse sua cabeça nos meus seios. Que bom que você me esperou. Que bom que você não desistiu de mim. Agora, descanse. Eu sou sua. Eu estou aqui. Mas que bobagem. Não existem mulheres sozinhas num fim de tarde de sábado. E a noite ainda não havia chegado. Não havia chegado, mas parece que agora ela está vindo. De encontro a mim. Foi você. Você, e esse seu carro. Cinza-chumbo. De encontro a mim, assim que pisei na rua. As lesões são bem graves. Não há mais como reverter esse sangramento que não pára, nem se a ambulância chegar agora. Pelo menos não estou sentindo dor. Mas estou com muita sede.

Sabe, parece de propósito. A cor do seu carro, e o fim do dia, e tudo o mais.

E eis que ela vem. Aqui está. Ela, a noite. Eu sabia que ela viria, cedo ou tarde. Pegue meus cigarros no meu bolso, dê aqui pra mim. Não, é claro que eu não vou fumar. Eu só quero abrir o pacote.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

cama elástica



Hoje eu fui assediada como nunca fui na vida. Assediada no sentido mais banal do termo; invadida fisicamente, contra minha própria vontade, de maneira direta, eficaz, implacável. Mas esse fato por si só não é nada surpreendente. Mulheres não tão feias estão sempre fugindo da possibilidade do assédio, ou melhor, da fatalidade do assédio, como se toda mulher tivesse que passar por isso em algum momento da vida, pelo simples fato de ser mulher. Mas o que houve de verdadeiramente surpreendente é que quem me assediou foi uma menina de 5 anos.
Era aniversário de um dos filhos do segundo casamento do meu pai. Eu, meia-irmã com 18 anos de diferença, não sabia muito bem se meu lugar era com os adultos, consumindo espumante e pasteizinhos recheados de culpa, ou com as crianças, as quais não costumo entender muito bem. Elas também não entendiam muito bem meu papel ali, e, muito ocupadas consigo mesmas, de maneira geral não me davam atenção. Acabei optando pelo espumante, talvez minha única possibilidade de conexão com ambos os mundos. Além disso, poderia ser útil para um melhor proveito da cama elástica, a única coisa ali que realmente me interessava.
Num dado momento meu pai se aproximou de mim, enquanto eu observava as crianças quicando descontroladamente naquela lona azul. Chamou minha atenção para uma menina a qual meu irmão cumprimentava. “Essa foi a menina que ele desconvidou”, disse meu pai ao pé do meu ouvido. De fato, o esforço do meu irmão para sustentar seu papel social naquele momento específico- o aniversariante, o centro das atenções, o anfitrião- era visível e de certa maneira comovente, mesmo que a consciência desse papel fosse algo incutido à força, algo que ele provavelmente não entendia, mas sentia o peso através da mãe, do pai, das outras mães, das outras crianças e de mim, quando vez por outra eu interrompia uma de suas euforias e o obrigava a me beijar mesmo sem ter vontade. “Como assim, desconvidou?” “Desconvidou. Na frente dela e de toda a classe, foi um drama.” “Mas por quê, você sabe?” “Ninguém sabe ao certo. Desentendimentos de colegas. Mas nós consertamos a situação.” Os pais se telefonaram, lamentaram a imprudência de seus respectivos filhos e consertaram a situação. Entre eles. Meu irmão não é leviano; se havia desconvidado a menina, com certeza tinha um bom motivo, ao menos um bom motivo para ele. E aquele era o seu dia, ora. Mas é bem provável que tudo aquilo fosse apenas mais uma oportunidade para que ele aprendesse algo sobre a vida adulta, ou algo sobre os adultos, o que talvez dê no mesmo. E lá estava ele, saído temporariamente da cama elástica para cumprimentar a persona non grata com a fleuma de um inglês dando bom-dia a alguém que não suporta. A menina? Cabelos encaracolados, nem bonita, nem feia. O que mais me chamou a atenção nela foram os gestos, calculadamente afetados, imitados não sei de onde. Talvez da própria mãe. Cumprimentou meu irmão, entregou o presente e logo saiu para brincar, como todos os outros.
Momentos depois eu estaria lá, na cama elástica. Me aproximei, tirei o tênis, o celular do bolso, subi a escada e rapidamente me tornei uma criança gigante, tentando derrubar as outras com meu peso. Propunha jogos para elas. Me exibia. Elas me admiravam, a começar pelo meu tamanho. Talvez somente por isso; mas era o que bastava, e uma vitória ao menos para mim. Eu parecia atrair mais crianças. Entre elas, a menina desconvidada, que pulava alegre junto com meu irmão, o desconvidador. Ambos agindo como se nada tivesse acontecido.
Bem, é claro que o meu controle sobre uma penca de crianças alteradas não duraria para sempre. Cansados das minhas brincadeiras pretensamente didáticas, eles encontraram algo bem mais divertido a fazer: tentar me derrubar. Coisa difícil de se conseguir, dada a nossa diferença de tamanho, força e peso. Após várias tentativas frustradas, um menino de camiseta e olhos cinzas teve a brilhante idéia de segurar minhas canelas. Ele foi esperto, era o único truque que poderia funcionar. E funcionou.
A menina não teve nenhuma dúvida. Se aproveitando do meu momento de vulnerabilidade, da minha temporária perda de controle, veio decidida em minha direção, como uma máquina, como uma mulher, ou como um homem, não sei ao certo. Subiu em cima de mim, enfiou a mão dentro da minha blusa, arranhando meu colo até que tirasse violentamente meu sutiã, e sem demora encheu suas mãozinhas perspicazes com meus seios. Foi rápido, fulminante. Segundos depois, atendendo aos meus pedidos de trégua, ela me soltou e já foi logo gritando passei a mão no peito dela! passei a mão no peito dela! passei a mão no peito dela! para quem quisesse ouvir.
Rapidamente coloquei meu sutiã de volta, dei mais uns pulinhos para disfarçar, tá tudo certo, não aconteceu nada comigo. E logo abanonei o ringue. Estava suada, provavelmente vermelha. Desconcertada. Eu tinha que reverter a situação, era inadmissível que caísse no jogo de uma menina de cinco anos. Ao mesmo tempo, que raio de jogo era esse? Eu não o entendia de todo, desconhecia algumas regras. Ela não queria somente chamar atenção. Ou, se queria, era para o que havia nela de mais obscuro, algo que toda criança tem e que os adultos têm medo de ver. Me confessei com uma amiga do meu pai que estava lá perto e com a qual tinha mais intimidade, contei a história toda. Ela, de mãe que é, tratou com a maior naturalidade possível. “Ah, ela viu e gostou, né? Não tem, então quis experimentar”. Tudo bem, era uma explicação plausível e confortável por ora. Afinal, a cama elástica contribuía para que os meus seios chamassem mais a atenção e se impusessem como a diferença escancarada entre eu e ela. Sem eles, eu era apenas uma criança grande. Mas a presença deles punha em contraste a sexualidade aflorada de uma mulher com a sexualidade incubada de uma menina. E, por algum motivo que me foge em absoluto, aquela menina queria acabar com essa diferença. Ou, ao menos, sobrepujá-la. Ela me viu, veio até mim e disse: "Olha só. Você está toda arranhada." Eu não podia acreditar que estava ouvindo isso. "Sim, foi você que me arranhou." Ela sorriu e não disse nada. "Por quê você fez isso? Nunca viu peito na vida, não?” Que observação idiota, pensei. É claro que ela já tinha visto um peito na vida, a questão não estava aí. Uma criança de cinco anos já sabe que ver é muito diferente de tocar. Ainda mais quando é proibido. E claramente inadequado. E algo que justo as mulheres escondem, as mulheres com todos os seus tesouros.
Ela não respondeu, provavelmente por vergonha, imaginei. Me dei por satisfeita e fui pegar mais uma taça de espumante, enquanto pensava que ela não conseguiria mais me encarar depois do que tinha feito. Minha advertência parecia ter surtido algum efeito.
E mais ou menos meia hora depois ela cruza comigo, enquanto eu vejo o mágico a tirar coelhos do nariz de algum menino. Cruza comigo e não tem dúvidas em olhar para mim. E eu não consigo deixar de olhar para ela. Ela, fixa nos meus olhos. O que eu poderia dizer? Recriminá-la de novo? Seria o mais inadequado possível. Seria também a confirmação de que ela precisava; a confirmação de que ela havia tirado o meu chão naqueles poucos segundos em que me invadira. Disse um oi. Apenas queria ouvir a resposta dela.
E ela, claro, ela não disse nada. Absolutamente nada. Sem deixar meus olhos, pegou três dos meus dedos da mão esquerda, apertou e puxou vigorosamente, com força. Não me machucou por um triz. Foi direta. Eficaz. Implacável. Com os olhos nos meus. Sem desgrudar sua retina da minha. E logo largou meus dedos, e me deixou. Me deixou desnuda, por minha conta e risco. Com o peito transbordando, o coração para fora. E saiu para brincar. Como todos os outros.




domingo, 11 de novembro de 2007

cadeira

acredite, você pode se sentar de uma maneira melhor.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Margot


dá bom dia. bebe água. come. anda pela casa. senta na varanda. ouve. é feliz. e de quebra, quando dorme, late: pensa que é um cachorro.

Doralice, o Mendigo e a bunda

assinou o cheque, deu boa noite e saiu do táxi chacoalhando-se entre as sacolas. uma delas pede penico, arrebenta e derrama algodões egípcios e outros tesouros por sobre o chão molhado. tragédia. enquanto Doralice tenta salvar a situação o salto agulha engancha num desnível da calçada e os joelhos paf! no chão, enquanto um rasgo decidido corta sua meia de seda de norte a sul. ex-impecável, Doralice já chora. chega o Mendigo:
- tudo bem aí?
- uma ova!
- quer ajuda?
- você não pode me ajudar.
- você é quem pensa.
- é? bem, então...
(e num desses momentos raros de rendição que às vezes brotam bem no meio de outros momentos Doralice se esquece por alguns instantes que está de quatro no meio da Brigadeiro Luís Antônio)
...então me diz algo reconfortante.
o Mendigo olha pra dentro de si por dois segundos.
- você é patética. a única posição em que você poderia ficar menos patética é assim. de quatro.
- por quê?
- bem... porque você tem uma bela bunda.
o Mendigo diz isso e, claro, dá uma gargalhada. está se divertindo.
Doralice tem que fazer algo a respeito dessa situação. tem que se levantar rapidamente. e de fato muito rapidamente se levanta, bufando. patética! põe as roupas todas debaixo do braço, e sai tropeçando em cima dos dez centímetros. patética. e assim que vira a esquina não consegue, simplesmente não consegue deixar de apalpar.
sua bunda.
ri, e constata: é o que resta.