sexta-feira, 28 de março de 2008

bem-feito

Era feia, e sabia. Sabia, mas fazia com que todos ao seu redor gostassem dela, e das regatas brancas. Brancas como a vela de um barco deve ser. Fazendo doer e estupefar-se a retina. Explodindo com toda a luz de um dia sem nuvens. Como é que as regatas brancas podem ser tão mais especiais do que as outras regatas? Como é que ela poderia ser mais especial que as outras? – Porque era feia. E sabia. Sabia que era para ser feia, feia e pronto, nem um pingo de beleza a mais do que isso. Estava pronta, defeito de fábrica, não tinha conserto. Mas também sabia que feiura e sabedoria, juntas, são fortes candidatas a algo superior. Algo superior à beleza. Algo que me afinou as veias e engrossou o sangue. Algo que entrou pela minha retina como uma agulha fina e comprida, me espetou o bojo da cabeça abrindo um coágulo minúsculo, mas dolorido o suficiente para eu não mais suportar. Espetei-a também, de volta. Bem-feito. Assim não é tão difícil de olhar. Assim o branco não é tão branco, ali, na ponta da faca, olhos nos olhos.

quarta-feira, 12 de março de 2008


Burn, pretty bridges burn
All my bridges burn
Will I ever learn?

All my bridges burn


Aconteceu quando eles estavam em Paris, no Vert Galant, sabe? aquele jardinzinho simpático que fica na ponta da Île-de-la-Cité, à beira do Rio Sena, as lanchas repletas de turistas passando à frente com seus alto-falantes, a Torre Eiffel à esquerda, a Pont Neuf à direita, o calor, o vinho, enfim, estavam em Paris e era verão. Foi vindo aos poucos uma gritaria da direção da Île Saint-Louis, um pequeno ruído que logo se transformava numa onda de berros desajustados e poliglotas. Foram ver o que tinha acontecido: eram as pontes, as pontes que ligavam a ilha em que estavam ao continente, ruindo. Se partiam em pedaços, uma em seguida da outra, primeiro a Pont de Sully, depois a Pont Marie e a Pont de la Tournelle, assim, de par em par, sincronizadamente, tanto da Rive Droite como da Rive Gauche. Não era um ataque terrorista pois não havia nenhum estrondo de bombas. O único barulho que ouviam além da gritaria histérica era o som gordo dos grandes e anciãos blocos de pedra mergulhando no escuro Rio Sena, produzindo ondas espessas que desequilibravam as lanchas turísticas. Os que estavam atravessando de um lado para outro corriam desesperados, muitos deles caíam no rio como ratos num terremoto, enfim, um desastre total. Eles viram a penúltima das pontes, a Pont au Change, se desfalecendo, do meio às pontas, e uma família de orientais se separando, o sogro e o pai de um lado, a mãe, o filho e a sogra do outro. Seguindo a ordem, em breve seria a última e mais antiga delas: a Pont Neuf, seus arcos à maneira romana. Eles se olharam, olharam a garrafa de vinho pela metade e se olharam novamente. Ela levantou os óculos de grau e coçou os olhos com força; ele começou a folhear o guia.
- Acho que as pontes se cansaram. – Ela disse.
- Se cansaram?
- É. Vai ver que é assim. Chega uma hora cansa. Vê aí quantos anos essa ponte tem.
- Essa aí...- ele procurou no Michelin em inglês, franzindo a testa por conta do parco conhecimento da língua. Ela sorriu; gostava quando ele franzia a testa daquele jeito.- tem quatrocentos anos. Fez quatrocentos anos no ano passado. Olha que curioso: na abertura das suas obras o rei Henrique III não parava de chorar porque tinha ido no mesmo dia ao funeral dos seus filhos favoritos que haviam morrido em duelo, e...
- Não temos tempo para isso, querido. É o seguinte: - Ela fechou o livro e as mãos dele dentro das suas. - De que lado você quer ficar?
Ele olhou para os olhos dela, vívidos atrás das lentes corretoras. - Do seu lado.