quarta-feira, 14 de novembro de 2007

cama elástica



Hoje eu fui assediada como nunca fui na vida. Assediada no sentido mais banal do termo; invadida fisicamente, contra minha própria vontade, de maneira direta, eficaz, implacável. Mas esse fato por si só não é nada surpreendente. Mulheres não tão feias estão sempre fugindo da possibilidade do assédio, ou melhor, da fatalidade do assédio, como se toda mulher tivesse que passar por isso em algum momento da vida, pelo simples fato de ser mulher. Mas o que houve de verdadeiramente surpreendente é que quem me assediou foi uma menina de 5 anos.
Era aniversário de um dos filhos do segundo casamento do meu pai. Eu, meia-irmã com 18 anos de diferença, não sabia muito bem se meu lugar era com os adultos, consumindo espumante e pasteizinhos recheados de culpa, ou com as crianças, as quais não costumo entender muito bem. Elas também não entendiam muito bem meu papel ali, e, muito ocupadas consigo mesmas, de maneira geral não me davam atenção. Acabei optando pelo espumante, talvez minha única possibilidade de conexão com ambos os mundos. Além disso, poderia ser útil para um melhor proveito da cama elástica, a única coisa ali que realmente me interessava.
Num dado momento meu pai se aproximou de mim, enquanto eu observava as crianças quicando descontroladamente naquela lona azul. Chamou minha atenção para uma menina a qual meu irmão cumprimentava. “Essa foi a menina que ele desconvidou”, disse meu pai ao pé do meu ouvido. De fato, o esforço do meu irmão para sustentar seu papel social naquele momento específico- o aniversariante, o centro das atenções, o anfitrião- era visível e de certa maneira comovente, mesmo que a consciência desse papel fosse algo incutido à força, algo que ele provavelmente não entendia, mas sentia o peso através da mãe, do pai, das outras mães, das outras crianças e de mim, quando vez por outra eu interrompia uma de suas euforias e o obrigava a me beijar mesmo sem ter vontade. “Como assim, desconvidou?” “Desconvidou. Na frente dela e de toda a classe, foi um drama.” “Mas por quê, você sabe?” “Ninguém sabe ao certo. Desentendimentos de colegas. Mas nós consertamos a situação.” Os pais se telefonaram, lamentaram a imprudência de seus respectivos filhos e consertaram a situação. Entre eles. Meu irmão não é leviano; se havia desconvidado a menina, com certeza tinha um bom motivo, ao menos um bom motivo para ele. E aquele era o seu dia, ora. Mas é bem provável que tudo aquilo fosse apenas mais uma oportunidade para que ele aprendesse algo sobre a vida adulta, ou algo sobre os adultos, o que talvez dê no mesmo. E lá estava ele, saído temporariamente da cama elástica para cumprimentar a persona non grata com a fleuma de um inglês dando bom-dia a alguém que não suporta. A menina? Cabelos encaracolados, nem bonita, nem feia. O que mais me chamou a atenção nela foram os gestos, calculadamente afetados, imitados não sei de onde. Talvez da própria mãe. Cumprimentou meu irmão, entregou o presente e logo saiu para brincar, como todos os outros.
Momentos depois eu estaria lá, na cama elástica. Me aproximei, tirei o tênis, o celular do bolso, subi a escada e rapidamente me tornei uma criança gigante, tentando derrubar as outras com meu peso. Propunha jogos para elas. Me exibia. Elas me admiravam, a começar pelo meu tamanho. Talvez somente por isso; mas era o que bastava, e uma vitória ao menos para mim. Eu parecia atrair mais crianças. Entre elas, a menina desconvidada, que pulava alegre junto com meu irmão, o desconvidador. Ambos agindo como se nada tivesse acontecido.
Bem, é claro que o meu controle sobre uma penca de crianças alteradas não duraria para sempre. Cansados das minhas brincadeiras pretensamente didáticas, eles encontraram algo bem mais divertido a fazer: tentar me derrubar. Coisa difícil de se conseguir, dada a nossa diferença de tamanho, força e peso. Após várias tentativas frustradas, um menino de camiseta e olhos cinzas teve a brilhante idéia de segurar minhas canelas. Ele foi esperto, era o único truque que poderia funcionar. E funcionou.
A menina não teve nenhuma dúvida. Se aproveitando do meu momento de vulnerabilidade, da minha temporária perda de controle, veio decidida em minha direção, como uma máquina, como uma mulher, ou como um homem, não sei ao certo. Subiu em cima de mim, enfiou a mão dentro da minha blusa, arranhando meu colo até que tirasse violentamente meu sutiã, e sem demora encheu suas mãozinhas perspicazes com meus seios. Foi rápido, fulminante. Segundos depois, atendendo aos meus pedidos de trégua, ela me soltou e já foi logo gritando passei a mão no peito dela! passei a mão no peito dela! passei a mão no peito dela! para quem quisesse ouvir.
Rapidamente coloquei meu sutiã de volta, dei mais uns pulinhos para disfarçar, tá tudo certo, não aconteceu nada comigo. E logo abanonei o ringue. Estava suada, provavelmente vermelha. Desconcertada. Eu tinha que reverter a situação, era inadmissível que caísse no jogo de uma menina de cinco anos. Ao mesmo tempo, que raio de jogo era esse? Eu não o entendia de todo, desconhecia algumas regras. Ela não queria somente chamar atenção. Ou, se queria, era para o que havia nela de mais obscuro, algo que toda criança tem e que os adultos têm medo de ver. Me confessei com uma amiga do meu pai que estava lá perto e com a qual tinha mais intimidade, contei a história toda. Ela, de mãe que é, tratou com a maior naturalidade possível. “Ah, ela viu e gostou, né? Não tem, então quis experimentar”. Tudo bem, era uma explicação plausível e confortável por ora. Afinal, a cama elástica contribuía para que os meus seios chamassem mais a atenção e se impusessem como a diferença escancarada entre eu e ela. Sem eles, eu era apenas uma criança grande. Mas a presença deles punha em contraste a sexualidade aflorada de uma mulher com a sexualidade incubada de uma menina. E, por algum motivo que me foge em absoluto, aquela menina queria acabar com essa diferença. Ou, ao menos, sobrepujá-la. Ela me viu, veio até mim e disse: "Olha só. Você está toda arranhada." Eu não podia acreditar que estava ouvindo isso. "Sim, foi você que me arranhou." Ela sorriu e não disse nada. "Por quê você fez isso? Nunca viu peito na vida, não?” Que observação idiota, pensei. É claro que ela já tinha visto um peito na vida, a questão não estava aí. Uma criança de cinco anos já sabe que ver é muito diferente de tocar. Ainda mais quando é proibido. E claramente inadequado. E algo que justo as mulheres escondem, as mulheres com todos os seus tesouros.
Ela não respondeu, provavelmente por vergonha, imaginei. Me dei por satisfeita e fui pegar mais uma taça de espumante, enquanto pensava que ela não conseguiria mais me encarar depois do que tinha feito. Minha advertência parecia ter surtido algum efeito.
E mais ou menos meia hora depois ela cruza comigo, enquanto eu vejo o mágico a tirar coelhos do nariz de algum menino. Cruza comigo e não tem dúvidas em olhar para mim. E eu não consigo deixar de olhar para ela. Ela, fixa nos meus olhos. O que eu poderia dizer? Recriminá-la de novo? Seria o mais inadequado possível. Seria também a confirmação de que ela precisava; a confirmação de que ela havia tirado o meu chão naqueles poucos segundos em que me invadira. Disse um oi. Apenas queria ouvir a resposta dela.
E ela, claro, ela não disse nada. Absolutamente nada. Sem deixar meus olhos, pegou três dos meus dedos da mão esquerda, apertou e puxou vigorosamente, com força. Não me machucou por um triz. Foi direta. Eficaz. Implacável. Com os olhos nos meus. Sem desgrudar sua retina da minha. E logo largou meus dedos, e me deixou. Me deixou desnuda, por minha conta e risco. Com o peito transbordando, o coração para fora. E saiu para brincar. Como todos os outros.




13 comentários:

Ana Dupas disse...

meu deus! prendam essa menina!!

Lekuanditala disse...

uahauhauhah

gente!
socorro!!!
isso é um curta!!
quero filmar!!!

pelo amor de deus, onde as crianças de hj vão chegar!!

anna disse...

acho que era a única menina normal do aniversário.

Ana Dupas disse...

Pensei melhor, e acho que a criança conseguiu expôr toda a sua raiva e angústia por ter sido "desconvidada" - ou seja, rejeitada, excluída - nessa atitude desenfreada de agir contra a irmã mais velha de quem a rejeitou. Assim, agrediu física e sexualmente alguém que estava na posição de rival, superior e bem-dotada... enfim, considero isso uma vitória psíquica da criança, o que poderia ter sido um trauma na sua vida foi exteriorizado, exacerbado e expurgado.

Ana Dupas, arte-educadora e filha de psicopedagoga.

camila kfouri disse...

é óbvio que o João é que tinha toda a razão.
vai saber o que a pequena opressora já não fez com o guri no calor da hora do recreio?

camila kfouri disse...

o João é que tinha toda a razão.
vai saber o que a pequena opressora já não fez com o guri no calor da hora do recreio...

marríe disse...

estava no interunesp, colecionando hematomas e olheiras...
muito bom texto, o seu, como é de praxe.
um beijo e um queijo

marríe disse...

cadê você? (é a minha vez de perguntar)

Natalia Mallo disse...

Compartilho da teoria de que assim como existem adultos sem noção, adultos malas, adultos invasivos e adultos prepotentes... existem crianças idem!

(Às vezes encontro na vida adultos e consigo ver a criança que foram e sei que não me dou com essa criança. Alguém já sentiu isso?)

O interessante é que nas crianças o julgamento ainda não está 100% formado, a propriocepção, o senso de inadequação... então eles realizam atos bizarros e muitas vezes cruéis de uma maneira espontânea, sem dissimulação, e o mesmo se traduz em atos de compaixão, entrega afetiva, generosidade... Tudo depende da situação e da criança.

Mas sem dúvida esta pequena travou uma questão de poder, de dominação. E poder + dominação + ertotismo são colegas desde o pré.


A menina é do tipo "posso tudo". Depois mamãe conserta.

E mães não deveriam "consertar" situações, justo aquelas onde a criança esta desenvolvendo sua capacidade de se preservar e escolher a companhia que quer pra si.

...

Gostei do tom confessional, de crônica.

Mas... e se tirassemos todas as referências auto-biográficas?

E se esquececemos que tudo isso aconteceu com a Mariá?

Nesse caso, as questões morais, psicologicas e etc passariam para segundo plano e estariamos lendo apenas uma historia perturbadora.

Seria apenas literatura, da boa.

Eu prefiro assim. Só literatura.

Uma historia bem contada.

Parabéns.

Unknown disse...

essa história de criança hipócrita não existe, elas são adultos menos elaborados. A maldade é maldade mesmo, a disputa existe. antes de pular, você tava ganhando, mas ela quis puxar seu tapete. chegou peitando, e por mais improvável que as expectativas imaginavam, saiu ganhando.

Unknown disse...

ela te peitou. mesmo improvável, ela saiu ganhando.

Anônimo disse...

bem...não sou muito versada em psicopedagogia, mas em infância fora do comum um pouco.

a gente se pergunta: o que é o caráter de alguém? o que é a maldade? a índole? o que é educação, e o que é inclinação natural? onde essa petiz aprendeu a abusar assim de alguém?

será que isso quer dizer que ela é uma pequena mala em desenvolvimento ou que simplesmente passeia inocentemente por lugares escuros da alma e por isso mesmo vai saber melhor que ninguém dos lugares mais
recônditos e misteriosos de nossa existência hipócrita?

será que ela evolui, será que ela evolui???

as pessoas em geral tendem a romantizar a infância.

pra mim
é uma das épocas mais aterradoras da existência.

vou torcer pela pequena mala.

Priscila Noronha disse...

Essa menina mostrou, com muita intensidade, o quanto que se sente despeitada! Psicoterapia para ela já!!!