sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

o que era doce

Há um rombo nesta casa.
O silêncio pesa mais sobre a minha cabeça. Por mais que a Margot não latisse nem chorasse, a impressão que dava era que ela sempre estava cantarolando. E, claro, havia o (único) som característico das unhas compridas no carpete de madeira na sala. O sapateado. E a respiração ofegante, que ela fazia de propósito. Nenhum som a mais.
Há um rombo, eu posso sentir. Dentro de mim e fora. Um buraco negro. Que não leva a lugar algum. Esse vazio que é ter consciência da existência. E da finitude da existência. E outros vazios. Ela, ela não se preocupava com essas bobagens. Ela preenchia o vazio, todo e qualquer vazio que pudesse existir, sem formular um só pensamento. Quando eu abraçava minha mãe ela se enfiava no meio dos nossos pés. Quando eu namorava ela se enfiava no meio dos nossos corpos. Quando eu chorava sozinha ela se enfiava no meio das minhas pernas. Vinha até mim e preenchia meu colo vazio. Se doava completamente. Sem pensar. Fazia tudo o que podia. E quando não havia mais solução, como sempre acontece, observava a vida. Uma voyeuse. Observava, observava, sem descanso. Parecia que estava tentando nos entender. Estudando todos os nossos passos. Nos perscrutando. Até incomodava, aquele olhar meio triste inundando a gente. Pára, Margot! A gente dizia. E ela abanava o rabo e não parava. A gente ia para outro cômodo, ela ia atrás e olhava: Estou aqui, viu? Olha, eu estou aqui. Estou aqui, estou aqui, estou aqui, com você. Um cão de companhia. Se a gente não queria ela vinha mesmo assim, e então a gente é que fazia companhia pra ela. Ela sabia, a danada sabia que às vezes fazer companhia pra alguém é muito mais reconfortante do que receber a companhia de alguém. Ela sabia, e então ensinava a gente a fazer companhia. Ficava junto. Encostava. Roçava. Cheia de doçura. Cheia de cartas na manga. Cheia de graça. Cheia de pêlos, pêlos, pêlos, por todo o corpo, por todos os lados, por todo o carpete, entupindo o aspirador, me fazendo espirrar. Enchendo a casa com a sua presença. Com seu cheiro de bicho. Ela, tão pequenininha. Ela, semi-cachorro. Um cão por convenção. Um blend de gato, leão, urso, ornitorrinco, guaxinim, macaco, coelho, cachorro só ao coçar as pulgas. Ela, que também era gente. Aliás, bem melhor que gente. Bem melhor que bicho. O supra-sumo da existência. O que há de mais avançado em matéria de alma.
Morreu hoje de insuficiência renal crônica, com um pouco mais de dois anos e meio. Uma jovem com doença de velho. Acabou antes do que a gente pensava. Como tudo que é bom.

11 comentários:

marríe disse...

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Mariá disse...

mais sobre a margot aqui:

http://reflementos.blogspot.com/2007/12/titititititit.html

marríe disse...

feliz ano novo atrasado. e abraços solidários com direito a tapinhas nas costas, margot devia ser adorável.

marríe disse...

a sobrevivência é sempre muito relativa. de absoluta mesmo só a certeza, mariá. e o tempo. vem e capta o essencial sem derramar água dos olhos de mais ninguém.

Unknown disse...

Mariá,
quero que saiba dos nossos sentimentos e condolências pela partida da Margot. Eu, Norton, Yamandú, Heleninha, Brigite Bardot, Rê Borbosa e o Gizmo sentiremos o mundo sem margot.

Natalia Mallo disse...

saudades dela

Anônimo disse...

parece que a vida é isso, e todos os bons livros e a arte que interessa (por mais de um tempinho) acaba falando disso. o mistério de nascer e morrer. e a gente pode escrever, pode pintar, pode tocar, para chegar a aceitar, mas não plenamente entender. afinal é o mistério.
gostei do texto.

Felipe Sant'Angelo disse...

fofa

marríe disse...

patos também grassitam.

Priscila Noronha disse...

Dá pra ver e se apaixonar pela Margot na sua descrição. Emocionante.

Bia disse...

Li a matéria sobre você na Bravo! (junho) e vim visitar seu blog.
Me emocionei bastante com esse texto, e estou passando pra deixar os parabéns.
Abraços.